A 25 de setembro de 2020, um derrame acidental de leite, causado pela queda de um reservatório da empresa Lactogal em Oliveira de Azemeis, causou a morte de centenas de peixes no rio Ui, um afluente do rio Antuã. Não foi possível apurar a quantidade de leite que entrou no rio Ui, tendo a empresa declarado que “parte do conteúdo do reservatório extravasou a bacia de retenção dos tanques”, no entanto, um artigo da página azemeis.net refere que “terão sido derramados 90 mil litros que chegaram lá através das condutas de águas pluviais”.

Tomando este acidente como ponto de partida, é interessante recordar que a mais simples definição de Matéria Perigosa é “qualquer substância (pura ou em mistura) que, pelas suas propriedades, possa causar danos à saúde humana, aos animais ou ao meio ambiente”. Não sendo o leite classificado como uma matéria perigosa, será que deverá ser tratada como tal, pelos Agentes de Proteção Civil (APC), em determinados cenários?
A nível pessoal, e para tentar perceber as consequências do derrame de leite ocorrido em 2020, achei necessário investigar um pouco mais. Esta pesquisa levou-me a três conceitos que tento explanar de seguida: Oxigénio Dissolvido (OD), Carência Química de Oxigénio (CQO) e Carência Bioquímica de Oxigénio (CBO).
O Oxigénio Dissolvido é a concentração de Oxigénio (O2) contido na água, essencial para todas as formas de vida aquática. Os ecossistemas aquáticos produzem e consomem Oxigénio, retirado da atmosfera na interface água – ar e/ou obtido como resultado de atividades fotossintéticas de algas e plantas. As concentrações de OD normalmente são expressas em mg/L, podendo também serem registadas em percentagem de saturação (quantidade de Oxigénio contido em 1L de água relativo ao nível total de Oxigénio que a água pode reter naquela temperatura).

Quanto à CQO e CBO, a Air Liquide explica que “ao degradarem-se, as matérias orgânicas consomem o oxigénio dissolvido na água. Se estiverem presentes em grande número, podem dar origem a um consumo excessivo de oxigénio e provocar a asfixia dos organismos aquáticos, que necessitam assim de uma ação de depuração das águas residuais. O grau de poluição exprime-se então como carência bioquímica de oxigénio em 5 dias (CBO5) e carência química de oxigénio (CQO). Quais são as diferenças globais?
- A CBO5 mede a quantidade de oxigénio consumida em 5 dias a 20°C pelos micro-organismos vivos existentes na água.
- A CQO representa todos os recursos suscetíveis de consumirem oxigénio na água, por exemplo os sais minerais e os compostos orgânicos.
De uma forma geral, a CQO representa o conjunto das matérias oxidáveis e a CBO5 representa a parte das matérias orgânicas biodegradáveis. A diferença entre a CQO e a CBO5 representa a carga em matéria orgânica pouco ou nada biodegradável. Para as águas residuais domésticas, a relação é de 1,5 a 2, o que corresponde a uma biodegradação fácil, podendo atingir 2,5 a 3 sem inconvenientes graves”.
Então, qual o impacto do leite no consumo do Oxigénio dissolvido na água? De acordo com um estudo da Universidade de Reading, no Reino Unido, que avaliou a carência bioquímica de oxigénio (em inglês Biological Oxygen Demand) para alguns poluentes, entre os quais o leite, devemos considerar a seguinte tabela:
Matéria Poluente | CBO (mg O2/litro de poluente) |
Esgoto doméstico tratado | 20 – 60 |
Esgoto doméstico não tratado | 300 – 400 |
Água resultante de lavagens | 1.000 – 2.000 |
Dejeto de gado | 10.000 – 20.000 |
Dejeto de porco | 20.000 – 30.000 |
Escoamento de silagem | 30.000 – 80.000 |
Leite | 140.000 |
Observando a tabela pode-se aferir que cada litro de leite derramado irá consumir 140.000 mg de Oxigénio na água, o que poderá significar, voltando ao exemplo inicial, que um derrame de 90.000 litros de leite para o rio Ui teria consumido 12.600.000.000 mg (12,6 toneladas) de O2, afetando gravemente a fauna e originando a morte de centenas de animais.
O impacto do CBO do leite não ocorre apenas quando entra diretamente para os cursos de água, é importante perceber que, ao ser permitido o seu escoamento para os sistemas de drenagem de águas residuais, tal poderá causar danos na sistema de tratamento a jusante, nomeadamente nas ETAR dimensionadas para tratar águas residuais domésticas, ainda que com eventual acréscimo de caudal industrial (pré-tratado).

Com tudo isto em mente, e partindo do pressuposto óbvio que o leite não é uma matéria perigosa, a questão é “como deverão os APC abordar um possível derrame, seja ele proveniente de um acidente rodoviário ou de um acidente industrial, que envolva grandes quantidades de leite?” Bem, não havendo uma resposta simples e direta, poderemos implementar o seguinte procedimento:
- Confinar o derrame, impedindo a sua dispersão e deposição em sistemas de drenagem ou cursos de água;
- Contactar os serviços responsáveis pela gestão/tratamento das águas residuais;
- Perceber se existem mecanismos de desvio ou de corte dos sistemas de drenagem;
- Implementar uma estratégia concertada entre as entidades envolvidas.
Muitos certamente irão achar um exagero implementar, ainda que parcialmente, um TO HAZMAT à volta de um derrame de leite, outros poderão encontrar obstáculos por não existirem planos e procedimentos para este tipo de incidentes, talvez até já existam procedimentos implementados em alguns locais, a verdade é que, aceitando qualquer definição existente de “matérias perigosas”, a proteção dos animais e do ambiente está sempre presente. É preciso compreender o problema e planear antes das situações surgirem porque depois “não vale a pena chorar sobre o leite derramado”.